Autor: Máximo Gorki
Diretor: José Celso Martinez Corrêa
1966, fevereiro, Teatro Brasileiro de Comédia
Gorki e seus Inimigos
Creio que não terá sido por
simples coincidência que no átrio do TBC, sexta-feira última, noite de estreia
para a crítica da peça de Gorki, Os Inimigos, se vendia, entre outros livros,
os ensaios de Plekhanov, Arte e Vida Social. Sendo ele um dos principais
teorizadores marxistas e lúcido crítico desta peça, cuja defesa fez um ano após
ter sido escrita e editada, talvez seja muito útil lê-lo para se ter uma noção
mais exata da importância de Os Inimigos no contexto da dramaturgia universal.
Claro que pode argumentar-se, associando as ideias de um, ao texto dramático do
outro, que as conclusões são óbvias. Mas, insisto, não obstante, pois o
expectador mais exigente tem oportunidade de conferir a validade da discussão
que a crítica idealista e impressionista ainda hoje propõe sobre a atualidade
da peça. Para os outros, os que não se preocupam com uma visão especulativa dos
problemas que derivam da peça, proponho que adotem a velha sentença de Spinoza:
“interessam-me os atos humanos, mas não para rir-me deles, nem para deplorá-los,
nem sequer para detestá-los, mas simplesmente para compreendê-los”. E mais: que
leiam com muita atenção o programa que o Oficina distribui. A opção de uns e de
outros, junto, porém, aquela que me perece dever ser a minha: qual a
perspectiva histórica, segundo a qual devem ser interpretados e compreendidos
os fatos e atos humanos cujas analogias se devem estabelecer entre duas épocas
(1905-1966), dois povos (o russo e o brasileiro) e duas situações psicossociais
(o prelúdio da Revolução Socialista e a decadência do neo-capitalismo)? Por
isso acho melhor ler Plekhanov, pois a resposta é longa. Comecemos por saber
que todo o sistema histórico sempre tende por anular o conceito orgânico que
lhe serve de estrutura. Daí o dilema: para ultrapassar um é necessário suprimir
o outro. Ora, o espectador brasileiro, a quem o diálogo do Teatro Oficina é proposto,
na sua maioria é constituído por uma elite pequeno-burguesa, de certo modo
intelectual ou intelectualizada, que pensa uma coisa e faz outra. Digamos mesmo
que esse público (não tenhamos ilusões: senão levarem Os Inimigos ao povo, o
povo não vai a Os Inimigos) é formado por uma ínfima camada de protótipos
multirraciais, cujos conceitos dos sistemas históricos, especialmente aqueles
em que vive, se fundamentam nas mais díspares interpretações: sobrenatural,
heroica, física, sócio-biológica, racial, menos a interpretação materialista da
história. Aqui as exceções confirmam a regra. E sendo assim, resta-nos ver a
peça sob dois ângulos opostos: se for para justificar
os fenômenos políticos que eclodiram doze anos depois, a peça é romântica, os
personagens são esquemáticos, a mensagem é obsoleta. Mas se for para explicar (e assim deve ser) o
aparecimento de ideias como reflexo de uma realidade objetiva externa,
obedecendo, como obedece, o conflito dramático à força de uma psicologia e
dinâmica da vontade e do pensamento de um povo, limitado por condições
materiais e por uma psicologia coletiva que se assemelha, ainda hoje, a uma
realidade atual, no caso, flagrantemente brasileira, então os Os Inimigos é um
espetáculo polêmico, exemplar e muito importante. Mais: não obstante a falência
dos movimentos operários europeus, que fizeram do seu espírito de classe um
companheirismo romântico, responsável entre as duas guerras, pela decadência
democrática, o espetáculo apresentado pela equipe do Teatro Oficina tem um
significado histórico adentro do nosso teatro. Mas será necessário que o espectador
lhe retire toda a especulação política, quiçá demagógica ou panfletaria, que,
aliás, Os Inimigos só possuem na medida em que tal lhe seja atribuída. Ao
contrário, deve conferir-se ao espetáculo o valor expresso de uma demonstração
realística da identidade de situações humanas, que valem por si mesmas, como
prova de uma denúncia feita por artistas conscientes de sua missão e
responsabilidades, artistas que honram a sua arte e a sua condição de
brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário