Autor: Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri
Diretor: Augusto Boal
1965, maio, Teatro de Arena.
Arena Conta Zumbi
Disse Antonio Vieira: “O Brasil tem o corpo na América
e a alma na África”. Não sei que luminosa intuição ou que tipo de pesquisa teria
levado o nosso famoso clássico, em plena segunda metade do século XVII, a
estabelecer as coordenadas desta afirmação. Mas sei que ela é verdadeira, como sei
que são autênticas as “brutalidades e os crimes de Vasco da Gama e Pedro Álvares
Cabral”, limpamente contadas pelo grande cronista português João de Barros, a
propósito da expedição punitiva organizada por dom Francisco de Almeida contra
aquilo que foi considerado na época “injúria negra”. Se eu tivesse, porém,
qualquer espécie de dúvida, o espetáculo do Arena varria do meu espírito a
ignorância: desde os autores aos intérpretes de “Arena conta Zumbi”, todos
são ali brasileiros (?) com alma africana. Melhor: todos são brancos com alma negra, cantando com entusiasmo e sinceridade
os delicados e angelicais negros de alma branca... Com efeito, Gianfrancesco
Guarnieri e Augusto Boal, os autores do script, revelando possuir
profundos conhecimentos das “imagens, atitudes, valores e estereótipos dos seus
antepassados” brancos, de suas reações perversas nas relações
cruéis com a
África e os africanos, fundamentam arbitrariamente
esse complexo confuso e mutável de mito e realidade e oferecem-nos este
espetáculo de teatro. Zumbi, o mito, assume na sua realidade romântica uma
pretensão de tese que não resiste à mínima especulação histórica (processo
dialético que os autores irreverentemente não utilizam). É óbvio que não apreciaremos
essa mensagem de Amor pela Liberdade com uma fundamentação tão frágil, tão
superficial e folclórica. Repugnaria à coerência que devemos a quem nos lê, como a todos repugnará
a velha lenda fascista do “comunista come criança”, dita, escrita (até já foi posta em teatro, também)
sussurrada ou gritada aos ignorantes e pobres de espírito. Glorifiquemos nossos
irmãos negros, a sua e a nossa liberdade, mas não se troquem os valores concretos
por abstrações demagógicas, não se confunda o mito com a realidade, nem se
distorça um e outra para atingir um populismo que é panfleto, mas não é arte.
Fixemos, pois, que, onde se vê e ouve o negro, deve ver-se e ouvir-se o
brasileiro. E onde está ou foi branco, é norte-americano. As calças Lee
e as execráveis vestes da Ku-Klux-Klan ajudam a criar o atual ambiente que se
pretende retratar. A partir daí, o mistério é mais concreto, a verdade menos
mistificação e todo o resto mais presente, mais conferível, até mais lógico. A
liberdade e nossos irmãos negros, mais nossos irmãos e mais liberdade.
Belo espetáculo, não
obstante as dúvidas expostas. Entre
elas, uma certeza de que algo de novo continua a processar-se no plano técnico
e estético dos valores postos em cena por Augusto Boal. No âmbito restrito da
arena e utilizando simples acessórios, Boal pulveriza o espaço através de uma
marcação que leva os intérpretes às mais belas imagens: cor, luz, ritmo, beleza
plástica, harmonia total. O desenvolvimento da ação faz-se de forma
empolgante, por vezes magistral. A originalidade e a força do espetáculo estão
em tudo quanto se recria naquele chão: vozes, gestos, cânticos, tudo se plasma
para formar essa pequena maravilha que é “Arena conta Zumbi”, apenas como realização
teatral. Os atores, muito bem. Guarnieri e Sfat, melhores. É, sobretudo, em
face destes méritos que nos faz pena não aceitar integralmente a problemática
que a peça sugere, mas não conseguiu transmitir.
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