quinta-feira, 11 de abril de 2013

Arena Conta Zumbi

Espetáculo: Arena conta Zumbi
Autor: Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri
Diretor: Augusto Boal
1965, maio, Teatro de Arena.

Arena Conta Zumbi


Disse Antonio Vieira: “O Brasil tem o corpo na América e a alma na África”. Não sei que luminosa intuição ou que tipo de pesquisa teria levado o nosso famoso clássico, em plena segunda metade do século XVII, a estabelecer as coordenadas desta afirmação. Mas sei que ela é verdadeira, como sei que são autênticas as “brutalidades e os crimes de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral”, limpamente conta­das pelo grande cronista português João de Barros, a propósito da ex­pedição punitiva organizada por dom Francisco de Almeida contra aquilo que foi considerado na época “injúria negra”. Se eu tivesse, porém, qualquer espécie de dúvida, o espetáculo do Arena varria do meu espírito a ignorância: desde os au­tores aos intérpretes de “Arena conta Zumbi”, todos são ali brasileiros (?) com alma africana. Melhor: to­dos são brancos com alma negra, cantando com entusiasmo e sinceri­dade os delicados e angelicais ne­gros de alma branca... Com efeito, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, os autores do script, revelan­do possuir profundos conhecimentos das “imagens, atitudes, valores e estereótipos dos seus antepassadosbrancos, de suas reações perversas nas relações cruéis com a África e os africanos, fundamentam arbitra­riamente esse complexo confuso e mutável de mito e realidade e ofe­recem-nos este espetáculo de teatro. Zumbi, o mito, assume na sua rea­lidade romântica uma pretensão de tese que não resiste à mínima espe­culação histórica (processo dialéti­co que os autores irreverentemente não utilizam). É óbvio que não apre­ciaremos essa mensagem de Amor pela Liberdade com uma fundamen­tação tão frágil, tão superficial e folclórica. Repugnaria à coerência que devemos a quem nos lê, como a todos repugnará a velha lenda fas­cista do “comunista come criança”, dita, escrita (até já foi posta em teatro, também) sussurrada ou grita­da aos ignorantes e pobres de espírito. Glorifiquemos nossos irmãos negros, a sua e a nossa liberdade, mas não se troquem os valores con­cretos por abstrações demagógicas, não se confunda o mito com a rea­lidade, nem se distorça um e outra para atingir um populismo que é panfleto, mas não é arte. Fixemos, pois, que, onde se vê e ouve o negro, deve ver-se e ouvir-se o brasileiro. E onde está ou foi branco, é norte-americano. As calças Lee e as execráveis vestes da Ku-Klux-Klan ajudam a criar o atual ambiente que se pretende retratar. A partir daí, o mistério é mais concreto, a verdade menos mistificação e todo o resto mais presente, mais conferível, até mais lógico. A liberdade e nossos irmãos negros, mais nossos irmãos e mais liberdade.

Belo espetáculo, não obstante as dúvidas expostas. Entre elas, uma certeza de que algo de novo conti­nua a processar-se no plano técnico e estético dos valores postos em ce­na por Augusto Boal. No âmbito restrito da arena e utilizando simples acessórios, Boal pulveriza o espaço através de uma marcação que leva os intérpretes às mais belas imagens: cor, luz, ritmo, beleza plástica, har­monia total. O desenvolvimento da ação faz-se de forma empolgante, por vezes magistral. A originalidade e a força do espetáculo estão em tudo quanto se recria naquele chão: vozes, gestos, cânticos, tudo se plasma para formar essa pequena mara­vilha que é “Arena conta Zumbi”, apenas como realização teatral. Os atores, muito bem. Guarnieri e Sfat, melhores. É, sobretudo, em face des­tes méritos que nos faz pena não aceitar integralmente a problemática que a peça sugere, mas não conse­guiu transmitir.

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