sexta-feira, 26 de abril de 2013

Um pouco de poesia


Voo

o bico da ave
da ave que voa
é a proa da nave
da nave que voa
as vigias da nave
da nave que voa
são os olhos da ave
da ave que voa
o coração da ave
da ave que voa
é o motor da nave
da nave que voa
as asas da nave
da nave que voa
são as asas da ave
da ave que voa
a alma da ave
da ave que voa
é a alma do Homem
do Homem que voa

Primavera de Estrelas.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

"O Caso Oppenheimer" na Aliança Francesa

Espetáculo: O caso Oppenheimer
Autor: heinar Kipphardt
Diretor: Jean-Luc Descaves
1965, abril, Teatro Aliança Francesa


"O Caso Oppenheimer" na Aliança Francesa

Bastava a leitura desta peça de Heinar Kipphardt para se ter a impressão da sua debilidade como texto escrito para ser transformado em espetáculo. Se “O Caso Oppenheimer” nos coloca perante a flagrante atualidade de problemas cruciais para a consciência universal (e isso é um mérito extraordinário) sua realização, porém, nos pareceu, desde logo, extremamente difícil quando fosse testada no placo. A comunicação das ideias teria de fazer-se com recursos cênicos que a peça não pressupunha. O diretor teria de recriar elementos demasiadamente estáticos, de natureza muito verbal. A ausência de situações, a complexidade dos problemas propostos à inteligência (e cultura) do espectador, a dificuldade em seguir o ritmo das palavras sem as poder repensar, a carência de uma dinâmica que as explicasse pela imagem, tudo contribuiu para tornar dificílima, fatigante, sem significado, uma peça muito importante, muito oportuna e muito válida. Assistimos ao julgamento de Oppenheimer, o “pai da bomba atômica", acusado de traição aos Estados Unidos só porque tem escrúpulos de consciência e recusa sua colaboração na invenção de uma bomba ainda mais mortífera e terrível para a humanidade, sem que uma tomada de posição venha garantir ao espectador se é ele que está com a verdade. Tudo resulta confuso e pastoso. A peça se esvazia de conteúdo no decurso do seu lento desbobinar. Os personagens não se caracterizam na dimensão dramática de uma realidade crítica que já pertence à história contemporânea. Jean-Luc Descaves renunciou a essa tomada de posição e mostra-nos apenas um julgamento comum, com o mínimo de solenidade burocrática, como se ele intencionalmente se omitisse à recriação que lhe competia realizar e se limitasse a apresentar-nos o texto literário, servido na bandeja do palco, com Heinar Kipphardt como único responsável. Nem sequer utilizou todos os recursos que a peça indica. Teve receio de interceptar o longo, e por vezes fastidioso, desenrolar das ideias, com imagens e som que promovessem uma pausa para o espectador repensar.

Se Descaves tivesse evitado todos estes obstáculos e fosse servido por um grupo de atores mais homogêneo o espetáculo seria bem diferente. Seria melhor. Treze homens em cena é um problema. É preciso que cada um e todos realizem um trabalho que seja de per si e no conjunto, uma afirmação mais profunda da arte de representar. Jairo Arco e Flexa, por exemplo, que é um ator de mérito, veste a pele de Oppenheimer, mas jamais consegue ter o peso, a solenidade e a força que a grandeza do personagem possui. E os outros atores são levados a seguir a mesma linha superficial. Talvez uma exceção em Rubens de Falco e Paulo Vilaça. Estão mais ajustados à distribuição conferida pelo diretor, o que não acontece com a maioria dos outros. Há outra exceção ainda. Mas aqui a responsabilidade não é só de Descaves. É também de Ferreira Leite. Seus recursos, marcadamente acadêmicos, deram uma sugestão muito pessoal de um personagem que não é da peça, mas resulta como se fosse.

Apesar de tudo isto, “O Caso Oppenheimer” deve ser visto. Mais: deve ouvir-se com toda a atenção. Deve meditar-se e deve ser apoiado como espetáculo que serve, não obstante, a todos os que têm o hábito de pensar e que amam a dolorosa procura da verdade.


sexta-feira, 19 de abril de 2013

Um pouco de poesia

A Janela Perdida

Onde estão as nozes
da velha nogueira
com o braço verde
dentro da janela

E as ginjas carnudas
onde estão corando
ou estarão voando
no bico dos pássaros

E as uvas douradas
de cachos gulosos
tão doces roubadas
até pelas abelhas

E as tangerineiras
passo-sim-passo não
entre o laranjal
semeando o chão

Onde estão  onde estão
as memórias da terra
se brotaram frutos
dos meus pés plantados

O Poeta Descalço
Lisboa, 1978.




quinta-feira, 11 de abril de 2013

Arena Conta Zumbi

Espetáculo: Arena conta Zumbi
Autor: Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri
Diretor: Augusto Boal
1965, maio, Teatro de Arena.

Arena Conta Zumbi


Disse Antonio Vieira: “O Brasil tem o corpo na América e a alma na África”. Não sei que luminosa intuição ou que tipo de pesquisa teria levado o nosso famoso clássico, em plena segunda metade do século XVII, a estabelecer as coordenadas desta afirmação. Mas sei que ela é verdadeira, como sei que são autênticas as “brutalidades e os crimes de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral”, limpamente conta­das pelo grande cronista português João de Barros, a propósito da ex­pedição punitiva organizada por dom Francisco de Almeida contra aquilo que foi considerado na época “injúria negra”. Se eu tivesse, porém, qualquer espécie de dúvida, o espetáculo do Arena varria do meu espírito a ignorância: desde os au­tores aos intérpretes de “Arena conta Zumbi”, todos são ali brasileiros (?) com alma africana. Melhor: to­dos são brancos com alma negra, cantando com entusiasmo e sinceri­dade os delicados e angelicais ne­gros de alma branca... Com efeito, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, os autores do script, revelan­do possuir profundos conhecimentos das “imagens, atitudes, valores e estereótipos dos seus antepassadosbrancos, de suas reações perversas nas relações cruéis com a África e os africanos, fundamentam arbitra­riamente esse complexo confuso e mutável de mito e realidade e ofe­recem-nos este espetáculo de teatro. Zumbi, o mito, assume na sua rea­lidade romântica uma pretensão de tese que não resiste à mínima espe­culação histórica (processo dialéti­co que os autores irreverentemente não utilizam). É óbvio que não apre­ciaremos essa mensagem de Amor pela Liberdade com uma fundamen­tação tão frágil, tão superficial e folclórica. Repugnaria à coerência que devemos a quem nos lê, como a todos repugnará a velha lenda fas­cista do “comunista come criança”, dita, escrita (até já foi posta em teatro, também) sussurrada ou grita­da aos ignorantes e pobres de espírito. Glorifiquemos nossos irmãos negros, a sua e a nossa liberdade, mas não se troquem os valores con­cretos por abstrações demagógicas, não se confunda o mito com a rea­lidade, nem se distorça um e outra para atingir um populismo que é panfleto, mas não é arte. Fixemos, pois, que, onde se vê e ouve o negro, deve ver-se e ouvir-se o brasileiro. E onde está ou foi branco, é norte-americano. As calças Lee e as execráveis vestes da Ku-Klux-Klan ajudam a criar o atual ambiente que se pretende retratar. A partir daí, o mistério é mais concreto, a verdade menos mistificação e todo o resto mais presente, mais conferível, até mais lógico. A liberdade e nossos irmãos negros, mais nossos irmãos e mais liberdade.

Belo espetáculo, não obstante as dúvidas expostas. Entre elas, uma certeza de que algo de novo conti­nua a processar-se no plano técnico e estético dos valores postos em ce­na por Augusto Boal. No âmbito restrito da arena e utilizando simples acessórios, Boal pulveriza o espaço através de uma marcação que leva os intérpretes às mais belas imagens: cor, luz, ritmo, beleza plástica, har­monia total. O desenvolvimento da ação faz-se de forma empolgante, por vezes magistral. A originalidade e a força do espetáculo estão em tudo quanto se recria naquele chão: vozes, gestos, cânticos, tudo se plasma para formar essa pequena mara­vilha que é “Arena conta Zumbi”, apenas como realização teatral. Os atores, muito bem. Guarnieri e Sfat, melhores. É, sobretudo, em face des­tes méritos que nos faz pena não aceitar integralmente a problemática que a peça sugere, mas não conse­guiu transmitir.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Um pouco de poesia

Brinquedos

João tinha um cão
um burro e um pião
e gostava dos três
pela mesma razão
mas amor por amor
amava mais o cão

Jogava o pião
no ar ou no chão
Jogava e rodava
na palma da mão
Como João se orgulhava
do seu rijo pião

Com a doce ilusão
de ter uma alazão
cavalgava o jumento
sempre ao lado do cão
por caminhos de vento
e horizontes em vão

O Poeta Descalço
Lisboa, 1978.





sexta-feira, 5 de abril de 2013

Gorki e seus inimigos

Espetáculo: Os inimigos
Autor: Máximo Gorki
Diretor: José Celso Martinez Corrêa
1966, fevereiro, Teatro Brasileiro de Comédia

Gorki e seus Inimigos

Creio que não terá sido por simples coincidência que no átrio do TBC, sexta-feira última, noite de estreia para a crítica da peça de Gorki, Os Inimigos, se vendia, entre outros livros, os ensaios de Plekhanov, Arte e Vida Social. Sendo ele um dos principais teorizadores marxistas e lúcido crítico desta peça, cuja defesa fez um ano após ter sido escrita e editada, talvez seja muito útil lê-lo para se ter uma noção mais exata da importância de Os Inimigos no contexto da dramaturgia universal. Claro que pode argumentar-se, associando as ideias de um, ao texto dramático do outro, que as conclusões são óbvias. Mas, insisto, não obstante, pois o expectador mais exigente tem oportunidade de conferir a validade da discussão que a crítica idealista e impressionista ainda hoje propõe sobre a atualidade da peça. Para os outros, os que não se preocupam com uma visão especulativa dos problemas que derivam da peça, proponho que adotem a velha sentença de Spinoza: “interessam-me os atos humanos, mas não para rir-me deles, nem para deplorá-los, nem sequer para detestá-los, mas simplesmente para compreendê-los”. E mais: que leiam com muita atenção o programa que o Oficina distribui. A opção de uns e de outros, junto, porém, aquela que me perece dever ser a minha: qual a perspectiva histórica, segundo a qual devem ser interpretados e compreendidos os fatos e atos humanos cujas analogias se devem estabelecer entre duas épocas (1905-1966), dois povos (o russo e o brasileiro) e duas situações psicossociais (o prelúdio da Revolução Socialista e a decadência do neo-capitalismo)? Por isso acho melhor ler Plekhanov, pois a resposta é longa. Comecemos por saber que todo o sistema histórico sempre tende por anular o conceito orgânico que lhe serve de estrutura. Daí o dilema: para ultrapassar um é necessário suprimir o outro. Ora, o espectador brasileiro, a quem o diálogo do Teatro Oficina é proposto, na sua maioria é constituído por uma elite pequeno-burguesa, de certo modo intelectual ou intelectualizada, que pensa uma coisa e faz outra. Digamos mesmo que esse público (não tenhamos ilusões: senão levarem Os Inimigos ao povo, o povo não vai a Os Inimigos) é formado por uma ínfima camada de protótipos multirraciais, cujos conceitos dos sistemas históricos, especialmente aqueles em que vive, se fundamentam nas mais díspares interpretações: sobrenatural, heroica, física, sócio-biológica, racial, menos a interpretação materialista da história. Aqui as exceções confirmam a regra. E sendo assim, resta-nos ver a peça sob dois ângulos opostos: se for para justificar os fenômenos políticos que eclodiram doze anos depois, a peça é romântica, os personagens são esquemáticos, a mensagem é obsoleta. Mas se for para explicar (e assim deve ser) o aparecimento de ideias como reflexo de uma realidade objetiva externa, obedecendo, como obedece, o conflito dramático à força de uma psicologia e dinâmica da vontade e do pensamento de um povo, limitado por condições materiais e por uma psicologia coletiva que se assemelha, ainda hoje, a uma realidade atual, no caso, flagrantemente brasileira, então os Os Inimigos é um espetáculo polêmico, exemplar e muito importante. Mais: não obstante a falência dos movimentos operários europeus, que fizeram do seu espírito de classe um companheirismo romântico, responsável entre as duas guerras, pela decadência democrática, o espetáculo apresentado pela equipe do Teatro Oficina tem um significado histórico adentro do nosso teatro. Mas será necessário que o espectador lhe retire toda a especulação política, quiçá demagógica ou panfletaria, que, aliás, Os Inimigos só possuem na medida em que tal lhe seja atribuída. Ao contrário, deve conferir-se ao espetáculo o valor expresso de uma demonstração realística da identidade de situações humanas, que valem por si mesmas, como prova de uma denúncia feita por artistas conscientes de sua missão e responsabilidades, artistas que honram a sua arte e a sua condição de brasileiros.